Le Fanu - A Estalagem do Dragão Voador
Edição Estampa de 1983, nº 44 da colecção Livro B
Tradução de Manuel João Gomes

Com o aparecimento da prodigiosa máquina- de-fazer-aventuras, inventada pela dupla Lukas-Spielberg, portentosa chocadeira de seres fantásticos e de imagens mirabolantes, corre o mundo o grave risco de esquecer aqueloutra nunca assaz louvada máquina que se chamava Joseph Sheridan Le Fanu, nome que velhos filmes de Dreyer, de Terence Fisher e de Vadim grafavam sempre nos genéricos.

Grafavam-no em tipo miudinho, é certo, mas quem tinha olhos para ver sabia que tudo quanto é vampiro, vampira, exorcista, estaca no coração, casa assombrada, castelo- -fantasma,caixões-abertos-de-noite-e-fechados-de-dia, tudo isso nasceu assim tal e qual no miolo perverso-macabro de Le Fanu.

Saibam pois quantos esta nossa denúncia lerem que Joseph Sheridan Le Fanu, ignorado por boa parte dos manuais das literaturas de língua inglesa, nasceu em 1814 em Dublin: é irlandês como Joyce, como Fitz James O'Brien, como Bram Stoker, cujo Drácula é, em boa verdade, uma sinfonia sobre temas de Joseph
Sheridan Le Fanu...

Começou a escrever no Dublin University Magazine em 1838, com o conto The Ghost and the Bone Setter, retranscrição de lendas irlandesas, em que as falas das personagens são reproduzidas na sua oralidade original.

Porque foi às lendas do folclore irlandês que, de acordo com a lição de Walter Scott, Le Fanu foi buscar a inspiração dos seus primeiros trabalhos.

Mas a personalidade e a obra de Ann RadIcliffe eram então demasiado populares nas Ilhas Britânicas para Le Fanu poder escapar à sua influência maléfica.

A presente Estalagem do Dragão Voador tem em si a marca radcliffiana: é uma novela falsamente fantástica, quase realista, embora tremendamente alucinante e magistralmente macabra: é ver o superlativo horror daquele olho de vidro e daquela dentadura postiça, acopulados com a caveira desenterrada de fresco nas últimas páginas deste volume.

Obra-prima do «sobrenatural explicado», ao modo de Ann Radcliffe, como já se disse, tem também muito de romance policial à Arsène Lupin. Imagine-se uma aventura de Lupin, fidalgo e bandido, a ser contada pela óptica da vítima e não pela óptica do grande escroque...

É isso A Estalagem do Dragão Voador, narrativa integrada pelo autor num conjunto a que pôs o título de In a Glass Darkly (Num Espelho às Escuras), colectânea que pretende dar à droga alucinante e narcótica um importante papel. Le Fanu confere o papel de narrador destas histórias a um tal doutor Hesselius, médico alemão, autor dum Ensaio sobre as Drogas nos Primeiros Séculos da Idade Média, ensaio onde amiúde se citaria o caso que constitui assunto desta novela.

Não hesite o leitor: Le Fanu é reconhecidamente um dos grandes contadores de histórias ingleses e, indubitavelmente, o principal herdeiro da terrível Ann Radcliffe.

Joseph Sheridan Le Fanu morreu (ou não?) em 1873: diz-se que viveu os últimos anos da vida retirado, longe do mundo, em convívio com as milhentas ficções terríficas a que deu vida, in a glass darkly...